VOU TORCER PELA SELEÇÃO
ARTIGO DO EX-GOVERNADOR DO
CEARÁ, CIRO GOMES, PUBLICADO NA REVISTA CARTA CAPITAL.
Em 1970, ditadura
braba, quem conta é meu amigo Fernando Gabeira, os exilados brasileiros se
reuniram para decidir torcer contra a Seleção Brasileira. A tese era de que a
vitória do Brasil na Copa fortaleceria o regime então pilotado por Emílio
Garrastazu Médici. Diante da televisão, o charme encantador da melhor seleção
de futebol jamais reunida instalou, porém, nos gestos de nossos valorosos
resistentes uma coisa completamente humana. Acabaram, ao menos em boa parte,
vibrando com a Seleção de Gerson, Tostão, Jairzinho, Pelé, Rivelino e sua
escola de pura arte e engenho brasileiros.
Tal me vem à lembrança ao
assistir, em plena democracia, uma onda de rancor, quando não de fascismo puro (“não
vai ter Copa”, afirma não sei quem, nem com qual legitimidade, esse ovinho
ridículo da serpente fascistoide que quer nascer entre alguns jovens
brasileiros).
A Copa do Mundo é só um
torneio esportivo. Trata-se, no entanto, do mais popular e em um esporte no
qual nossos atletas mantêm um globalmente reconhecido protagonismo. Nas
eleições de 1974, as primeiras eleições gerais depois do tricampeonato, a
ditadura levou uma sonoríssima surra eleitoral. E, ouso afirmar, começou ali o
seu desmonte.
Certa fração da elite
brasileira supõe que nosso povo é imbecil e vai esquecer de seu drama cotidiano
dentro dos ônibus, cercado pelo medo da violência que assola o País, assustado
com a possibilidade de precisar da rede de saúde pública e, talvez pior, estupefato
com o escárnio diário refletido nas notícias malcheirosas da roubalheira
generalizada e impune. E o faria apenas porque, na melhor hipótese, podemos
superar Alemanha, Espanha, Argentina, Itália, e correndo por fora o Uruguai,
favoritos ao lado do Brasil ao título.
Para mim, nenhum político deixará de ser reconhecido como
pilantra e incompetente se o Brasil ganhar e nenhum dos decentes e
comprometidos com a sorte popular, e sei que os há, deixará de sê-lo se o
Brasil perder.
Por essas iminências do
início do torneio, o que mais tem me chamado a atenção é a ameaça de violência,
o oportunismo de atrelar ao contexto do evento toda e qualquer reivindicação, a
maior parte muito legítima, outras nem de longe, e, indisfarçavelmente, as
conveniências eleitorais despudoradas, como se Aécio Neves e Eduardo Campos não
estivessem tão comprometidos com a Copa da Fifa quanto Dilma Rousseff e Lula.
Cada um deles lutou o que pode para atrair a Copa para o Brasil e para os seus
estados, gastaram dinheiro público com estádios e obras complementares. Fizeram
propaganda de suas façanhas em abrigar os jogos nas suas cercanias
hereditárias.
Até aí tudo bem. No Bar
Brasil, como em todo boteco que se preze, o freguês sempre tem razão, pouco
importa sua coerência ou motivação. Mas e as mediações da sociedade civil que
nos devem proteger das manipulações politiqueiras ou dos lobbies e
interesses minoritários de grupos de pressão? Vão se acuar? Vão se omitir? Vão
desertar de seu dever cívico (eita, agora me senti um dinossauro)?
Por que o povo brasileiro
está convencido de que todos os estádios foram escandalosamente superfaturados,
enquanto não se têm recursos para graves essencialidades do nosso viver
cotidiano? Porque esta é a tese despolitizada que adotou nossa grande mídia e
ninguém (que eu tenha visto) a contestou. E essa tese da podridão geral é
perfeita apenas para os podres. Pois, de um lado, deixa impunes aqueles que
malversaram o precioso tostão público e claramente os há. Mais grave, porém:
joga na vala comum os que se comportam.
Um único jornalista – Juca
Kfouri, não por acaso o mais severo e crítico de nossos cronistas esportivos –
registrou, e assim mesmo em seu blog, o fato de o estádio mais barato por
assento das últimas quatro Copas ter sido executado pelo Brasil, no estado do
Ceará.
Imprensa a favor, Brecht ensinou, é publicidade. Mas por que
produzir generalizações mentirosas e negativas? Por que um esforço para sujar a
imagem do Brasil no exterior neste momento? Ou alguém pensa que a África do Sul
não tem violência, miséria, maus-tratos na saúde pública e corrupção?
Em resumo, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra
coisa. Vou continuar na luta contra as mazelas graves do nosso país, mas vou
fazer o que estiver ao meu alcance para torcer pelo Brasil. Que se faça um bom
trabalho neste torneio. Em casa, vou torcer apaixonadamente pela nossa Seleção.
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